Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou o julgamento da ADPF 1076, que aborda resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para implementar uma política antimanicomial no Judiciário do Brasil, impedindo a existência dos hospitais de custódia para pessoas com transtornos mentais envolvidas em processos criminais.
Apoiadores da chamada “desinstitucionalização” dos criminosos com doença mental grave têm focado seus posicionamentos no argumento da humanização do tratamento, afirmando que as novas regras ajudam a combater abusos, facilitam a reintegração social e favorecem a criação de uma rede de apoio para os pacientes. Na sessão que ocorreu no Supremo na quinta-feira (10), a tese da humanização foi contestada com veemência.
Em sua fala, o advogado Marcel Chaves Ferreira, representante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), fez críticas justamente ao caráter desumano da resolução do CNJ. Para ele, a política antimanicomial:
- Desampara pacientes com transtornos mentais graves, ao acabar com as únicas unidades especializadas em seu tratamento sem garantir alternativas seguras e eficazes;
- Coloca em risco os direitos de uma população vulnerável. “Negar a doença mental não a extingue, mas extingue direitos dos doentes mentais deixados à própria sorte”, afirmou Ferreira;
- “Desafia o princípio da dignidade da pessoa humana”, ao desconsiderar que todo ser humano possui características únicas, generalizando tratamentos de doenças mentais sem fazer a devida distinção entre os casos;
- Pode criar um caos no tratamento a pacientes psiquiátricos em geral, porque a estrutura da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) já é insuficiente, e o fechamento dos hospitais de custódia agrava essa situação;
- Impõe risco à segurança de pacientes e profissionais nos hospitais gerais e nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), aos quais os criminosos poderiam ser encaminhados;
- Pode sobrecarregar o sistema de saúde como um todo.
Além da desumanização, outros problemas da resolução do CNJ foram levantados ao longo da sessão por Ferreira e os amici curiae:
- Ativismo judicial: o CNJ extrapola sua função ao alterar normas que deveriam passar pelo Legislativo.
- Risco à segurança pública: Liberação de pacientes perigosos sem tratamento adequado pode levar à reincidência de crimes.
- Ausência de plano de transição: Não há estrutura clara para a reintegração segura dos pacientes à sociedade.
Ainda assim, a Advocacia-Geral da União (AGU), representada pelo advogado da União Lyvan Bispo dos Santos, defendeu a constitucionalidade da resolução, argumentando que o CNJ atuou dentro de seus poderes regulamentares e que a resolução é importante para assegurar os direitos das pessoas com transtornos mentais. Ele negou que haja uma violação da separação dos poderes.
O representante da AGU fez ainda uma afirmação mentirosa: que a resolução do CNJ estabelece “algo que já é realidade lá fora”. O único país do mundo que já proibiu manicômios judiciários foi a Itália, onde a Lei Basaglia, de 1978, obrigou o fechamento progressivo dessas instituições. Mas, para tratar pessoas com transtornos mentais que cometem crimes, o país continua submetendo-as a tratamento compulsório, embora isso ocorra em residências terapêuticas ou em centros comunitários de saúde mental, em vez de prisões ou hospitais psiquiátricos de alta segurança.
O jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes) vê a resolução do CNJ como “mais uma questão em que um posicionamento ideológico se sobrepõe à técnica nas áreas jurídica e de segurança pública”. “A desativação dos manicômios ignora completamente as consequências sociais de se devolver ao convívio social indivíduos que, por desequilíbrio de natureza mental, não têm condições de nela se manter sem oferecer riscos a quem o cerca”, diz.
Para ele, a ideia do CNJ “deriva da subversão da função social das penas e das medidas de segurança, que deveriam ser entendidas como mecanismo de proteção social”, mas têm sido consideradas “apenas do ponto de vista do bem-estar do preso ou do interditado”.
Do ponto de vista jurídico, ele considera que a questão “parece fugir bastante à esfera de atribuições do Conselho Nacional de Justiça”. “Mas, infelizmente, não será surpresa se a Suprema Corte ratificar a determinação, pois ali também tem sido comum ver a prevalência de uma agenda ideológica sobre questões mais técnicas com reflexos na segurança pública”, afirma.
“Absurda” e “absolutamente inconstitucional”, diz Janaina Paschoal sobre resolução
Janaina Paschoal (PP-SP), vereadora eleita em São Paulo e doutora em Direito Penal pela USP, é uma das figuras públicas que mais tem manifestado preocupação com a política antimanicomial proposta pelo CNJ. A resolução, afirma ela, é “absolutamente inconstitucional”, porque o CNJ não pode legislar nem tem competência para revogar dispositivos do Código Penal. Mas, para ela, o aspecto jurídico não é o maior problema.
“Além da incompetência absoluta do CNJ para uma norma dessa natureza, além da questão da inconstitucionalidade e da incompetência, no mérito, a resolução é absurda, na melhor das hipóteses. Eles estão partindo do pressuposto de que a lei antimanicomial de 2001 – que não fala de Direito Penal, de medida de segurança, de crime ou de ato previsto como crime, que não fala de inimputabilidade –, eles estão partindo do pressuposto de que essa lei se aplica ao âmbito penal, e estão determinando o fechamento dos hospitais de custódia”, diz.
A lei a que Janaina faz referência, da Reforma Psiquiátrica, promulgada em 2001, prevê o fechamento gradual de manicômios e hospícios no Brasil, e tem como principal diretriz que a internação do doente mental só deve ser feita como último recurso. Um ano após a promulgação dessa lei, o governo criou os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que servem para substituir os manicômios. Mas a lei nada fala sobre os manicômios judiciários, nem sobre casos de crimes cometidos por doentes mentais. O CNJ usou a lei de 2001 e, numa interpretação elástica, determinou que os manicômios judiciários também não devem existir.
“Na prática, eles mandaram fechar e encaminhar os pacientes [criminosos] internados [nos hospitais de custódia] para o sistema público de saúde, que hoje já não tem hospital psiquiátrico comum”, afirma Janaina. Segundo ela, “muitas pessoas estão lendo a resolução de maneira errada”, considerando que os criminosos vão ser tirados de manicômios judiciários e hospitais de custódia e ser mandados para manicômios ou hospitais psiquiátricos comuns, mas essas instituições já não existem.
“Na verdade, o que está escrito na resolução é que esses pacientes vão para hospitais gerais, que são hospitais normais, onde todas as doenças são tratadas. Agora, se são hospitais que não estão dando conta nem sequer das pessoas que têm um surto psicótico, uma depressão profunda e não fazem mal a ninguém, que dirá uma pessoa que, por força de uma doença mental, estupra, mata, fere gravemente, com água fervente, com facas… que são casos existentes, reais”, comenta. “Uma pessoa que estuprou uma criança até a morte, por força de uma doença mental, esfaqueou alguém, queimou deliberadamente, não vai poder ser internada, porque não tem vaga, não existe lugar”, acrescenta.
Por fim, Janaina destaca outro ponto problemático: a total ausência de debate. “Essa resolução foi editada sem nenhum debate com a comunidade jurídica. Quem defende tem uma visão muito ideologizada, muito romantizada. É óbvio que ninguém é favorável àquele sistema asilar para doentes mentais que não cometem atos previstos como crime, e mesmo os doentes mentais que cometem atos previstos como crime devem ser tratados [da forma adequada] – e atualmente são, há instituições específicas. Ninguém é favorável a deixar a pessoa o resto da vida ali, num sistema de asilamento. Agora, não dá para você ignorar o perigo e obrigar a sociedade a tolerar uma situação dessa.”
Fonte: Gazeta do Povo